quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O Paraíso.

Eu e alguns amigos escritores aqui da minha cidade combinamos de fazer um mini-projeto (contos baseados em músicas, só para passar o tempo). Cada um escolheu uma música e fez com que a letra dessa música fosse base para o roteiro do conto.
Eis a música no qual meu conto é baseado e, logo abaixo dela, o conto:



  As nuvens se agrupavam em meio ao céu, criando diversas linhas majestosas as quais davam vida à chuva. E aquela chuva castigava as ruas de Nova Iorque.
Poças d'água se formavam no asfalto imperfeito. Algumas pessoas abriam seus guarda-chuvas, uma se alojavam embaixo das lonas nos estabelecimentos, outras apenas seguravam seus jornais em cima da cabeça, numa tentativa falha de se proteger da chuva. Era como tentar se proteger de uma facada usando uma folha de papel. Uma facada, aliás, era o que Matthew acabara de levar em um dos becos escuros da cidade.
– Esse merda só tem 30 dólares na carteira! – gritou um membro da gangue. – 30 dólares e a foto de uma vadia. Como você conseguiu uma vadia tão gostosa dessas sendo pobre?
– Seu filho da puta! – berrou Matthew, com as mãos na barriga, tentando conter o sangramento. – Não fale assim da minha mulher!
Matthew estava claramente em desvantagem: caído no chão, com um grave ferimento de faca exposto em sua barriga e ainda cercado por 3 membros de uma gangue local, com suas jaquetas de couro, calças rasgadas e coturnos com bico de aço. Antes de chegar até o ponto final, ele já havia tentado escapar pelos becos traiçoeiros. Seus passos corridos tocavam as poças e encharcava seus sapatos. Os passos dos perseguidores também atingiam as poças, mas estas faziam um barulho mais alto. Talvez pelo medo. Ou, então, pelo fato do som se propagar de forma maior em um território hostil. De qualquer jeito, não havia escapatória. De qualquer jeito, ele continuava caído, sem chance alguma contra seus inimigos.
– Essa foi a última vez que você pisou no nosso território, sua bichinha! – disse o membro da gangue, furioso.
Logo após terminar sua frase, o sujeito guardou os 30 dólares no bolso, jogou a carteira vazia em cima de Matthew e fez um sinal com a cabeça para os outros dois membros, os quais começaram uma incessante onda de chutes contra o rapaz esfaqueado. Os bicos de aço golpeavam as costelas de Matthew, que urrava de dor. Cada chute fazia um músculo de sua face se contrair. Os rapazes eram violentos, e seus ossos eram frágeis. Quebravam-se facilmente como palitos de dente. Quando finalmente não parecia mais haver sinal de vida, os agressores deixaram-no em paz.
Embora estivesse imóvel, Matthew ainda não estava morto. Parecia um clichê, mas o tempo parou e ele viu sua vida inteira passando através dos seus olhos: haviam memórias de quando ele era apenas um bebê, aprendendo a andar. Memórias de uma infância que se tornou rapidamente a adolescência, a qual começava realmente suas conquistas na vida. A maior conquista de toda a sua vida, porém, aconteceu na fase adulta. Matthew se casou com Sherrie, aquela que ele jurava ser o amor da sua vida. Aquela que se tornou a última imagem que ele veria antes da sua morte.
Com o pouco de força que lhe restava, Matthew sentiu a chuva escorrer entre seus dedos, pela última vez. O sangue escorria pelo beco imundo, e era levado para as ruas através da água da chuva. O rapaz moribundo respirou a última porção de ar que lhe restava, e liberou tudo em um curto e forte berro. Tudo se apagou.
Passou um tempo, e de alguma forma, Matthew abriu os olhos. A forte luz cegava os seus olhos que antes estavam acostumados com a escuridão. Tentou bloquear parte do clarão com suas mãos, mas os feixes de luz vazavam entre seus dedos. As ondas de som faziam os tímpanos de Mattew vibrarem, mas ele não conseguia distinguir os barulhos. Mistos de gritos eufóricos, pensamentos de desconhecidos, explosões, mas que, de alguma forma, se conectavam de forma assustadoramente harmoniosa. Levou um tempo até que ele conseguisse se acostumar com o ambiente misterioso e finalmente criar forças para se levantar; mesmo posto sobre os seus pés, em sua cabeça ainda havia um emaranhado de ideias. Olhou à sua volta, e observou cada detalhe: o lugar era uma bagunça completa, continha uma mistura esquisita de partes de Nova Iorque – com alguns de seus arranha-céus quebrados e outro incompletos, com vidraças que refletiam as intensas luzes estelares –, combinadas com lugares os quais a mente de Matthew já havia passado antes – a casa humilde de madeira na qual passara a sua infância em Chicago, o velho campo de baseball em que seu pai levava-o nas tardes de Domingo, a Igreja com arquitetura extravagante na qual ele havia se casado –. Ele ficou ainda mais confuso ao notar partes da sua vida presentes naquele lugar. Tocou os seus braços para ver se sentia algo, e tudo parecia normal. Carne, osso, o sangue circulando em suas veias. Porém, havia sim algo diferente: o rapaz usava uma roupa aparentemente velha, com tons marrons e cinza intercalando entre si. Passou a mão em sua cabeça, e percebeu que seus cabelos negros haviam crescido consideravelmente; Matthew nunca deixara o cabelo crescer em nenhum outro momento da sua vida. Mas, aquele não era um momento sequer. Talvez não podia-se nem dizer que era um momento de sua vida.
– Um sonho. – suspirou Matthew – Isso é só um sonho.
– Não é um sonho, filho. – disse uma voz um pouco áspera, que ecoou pela mente de Matthew.
Ao olhar para trás, Matthew se deparou com um sujeito que lhe parecia familiar, mas não conseguia lembrar de onde o conhecera. A figura era dona de um cabelo um pouco longo, com uma cor branca que, talvez por uma ilusão de ótica, lembrava a mais pura prata. Dotado de uma visão cansada e linhas faciais que pareciam mais um rascunho do tempo, o senhor usava um manto de cor muito semelhante às vestes de Matthew.
– Todos que chegam aqui acham que isso é algum tipo de sonho, algum truque da nossa mente. – sorriu o senhor. – Mas, quem pensa isso não esta totalmente errado.
– Quem.... quem é você? – perguntou Matthew. – E, aonde estamos?
O velho sorriu.
– Eu, meu filho, sou aquele quem dá a vida, sou aquele quem tira-a também. Sou aquele quem molda o Universo, e também aquele quem o destrói. Eu sou aquele quem inventou cada partícula que constituí tudo o que você vê, ouve, sente e questiona. Eu sou o grande Maestro do Universo. Eu sou o Criador, e nós estamos na minha maior criação: o Paraíso.
Os nós na cabeça de Matthew pareciam se retorcer, se apertar e se soltarem, tudo ao mesmo tempo. Uma lágrima saiu involuntariamente, e fez o seu caminho até o chão. Suas pernas, então, seguiram o mesmo caminho da lágrima, e, sem se dar conta, Matthew estava apoiado em um de seus joelhos. Bem na frente de Deus.
Nenhuma palavra foi proferida por nenhum dos dois, durante um longo tempo (embora o tempo não parecesse importante naquele lugar). Matthew só continuava à observar tudo em sua volta. Olhava Deus nos olhos, querendo perguntar algo. Aquilo parecia tão irreal.
Matthew então criou coragem para perguntar, levantou-se e se pôs à falar:
– Olhe... eu... bem, eu não sei por que, mas eu não tenho dúvidas de que você é mesmo Deus. Eu... não sei, não sei se é algo à minha volta, não sei se é o que eu vejo em ti... mas, eu sinto que é mesmo Você.
– Até os mais céticos acreditam quando chega a hora, filho. – respondeu o Senhor, com seu típico sorriso. – A Fé é algo difícil de se adquirir para alguns, mas é impossível de negá-la quando se está frente à frente: criação e criador.
Matthew assentiu. Nunca foi muito religioso, mas também nunca fazia nada de errado. Era como uma balança perfeita.
– Eu estava tentando criar coragem pra lhe perguntar algo... Deus. – disse Matthew. – Eu estou morto?
Deus mudou levemente sua expressão, como se a pergunta que acabara de ouvir fosse algo delicado de se falar no momento.
– Filho, de certa forma, você está morto. – respondeu o Criador, olhando nos olhos de Matthew. – Mas eu só posso dar a resposta final após você se decidir.
– Me decidir?? – falou Matthew, surpreso. – Quer dizer, entre morrer e....
– … Ficar no Paraíso. – completou Deus. – Sim, exatamente.
A cabeça de Matthew simplesmente implodiu. Desde que havia chegado no Paraíso, Matthew fora bombardeado com dúvidas e mais dúvidas. Agora, quando começa e encontrar as respostas, é posto diante da maior decisão da sua pós-vida.
– Filho, veja bem, eu não posso influenciar nas suas escolhas. – explicou Deus, colocando seu braço por cima dos ombros de Matthew. – Mas eu posso te mostrar todas as coisas daqui, tirar as suas dúvidas enquanto você se decide.
O rapaz se mostrou pensativo no começo, mas logo aceitou a proposta do Criador. Assim, os dois andaram pelo Paraíso, e Matthew ficava cada vez mais deslumbrado com tudo o que via: os montes cobertos por nuvens, as colunas nebulosas espalhadas por todo canto, os rastros que as estrelas deixavam, tudo como uma perfeita maquete do espaço. Foi aí que Matthew surgiu com uma pergunta:
– Aonde o Paraíso fica exatamente, afinal?
O Criador sorriu de forma mais empolgante que das outras vezes, como se essa fosse a pergunta que ele mais sentia prazer em responder.
– Ele fica acima do centro do Universo. É possível ver tudo daqui. É possível, até, ouvir o Universo se expandindo aos poucos. Por isso é fácil observar os fenômenos como as nebulosas, a ponta da Via Láctea – apontou para um local brilhante no espaço.
– Isso é simplesmente.... incrível! – falou Matthew, estupefato. – Mas, e todas as coisas familiares que eu vi quando eu cheguei? Prédios, lugares importantes do meu passado... o que estão fazendo aqui?
– O Paraíso não é o mesmo para todos, filho. Todos que vêm para cá precisam se sentir em casa, precisam carregar consigo as melhores lembranças de sua vida. Tudo o que, eventualmente, um dia lhe fará falta, está presente aqui.
Matthew então começou a se lembrar das coias que havia deixado para trás, e foi aí que se deu conta que sentia falta de uma das coisas mais importantes de sua vida: Sherrie.
As memórias de quando Matthew e Sherrie eram mais jovens chicoteavam pelo cérebro do rapaz. O dia de quando se conheceram, o primeiro beijo e o casamento. Matthew se lembrou de todo o amor que sentia por Sherrie, e isso fez seu corpo ferver e seu coração ser esmagado. A dor lhe estapeava por todos os lados, e o grito de urgência escapava-lhe pela garganta. Matthew estavava prestes à cair, mas o Criador lhe segurou.
– Meu Deus... o que foi isso? – perguntou Matthew, tremendo.
– Lembranças, meu filho. – respondeu o Criador. – Eu lhe disse que, tudo o que você sente falta ou um dia irá sentir, te acompanham até o Paraíso. O seu amor lhe acompanha, mas de mãos dadas com a dor de tê-la tão longe de ti.
– Há algo mais que você deva me mostrar, Senhor? – questionou Matthew.
– Na verdade, há sim, meu filho. – respondeu o Criador. – Pegue o celular no seu bolso e faça uma ligação para o primeiro número.
– Eu acho que não há nenhum celular... – disse Matthew enquanto vasculhava seus bolsos. – … comigo. Ei, de onde surgiu isso?
– Se esqueceu que eu sou o Criador? – brincou Deus com uma piscada. – Agora, ligue para o número.
Matthew não reconhecia o tal número, mas obedeceu as ordens do Criador e ligou. Deu o primeiro toque. Foi-se o segundo toque. Passaram-se muitos toques, mas ninguém atendeu.
– Nada. – disse Matthew. – Ninguém atendeu.
– Eu sei, filho. – disse Deus, um pouco sério. – Ninguém pôde atender, porque não há ninguém em casa.
– Não há ninguém em casa? – perguntou Matthew, confuso. – Afinal, de quem é esse número?
Deus não disse nada, apenas se aproximou de Matthew e colocou a mão sobre a sua cabeça. Logo, Matthew foi transportado para uma cena totalmente fora do Paraíso: ele agora estava em um hospital.
Uma moça estava sentada ao lado da cama de um paciente desacordado. Com seus cabelos castanhos encaracolados e caídos sobre os ombros, a moça de aparência frágil estava com os olhos vermelhos e inchados, os quais haviam derrubado muitas lágrimas em seu vestido xadrez.
– Eu estou com você agora, meu amor. – dizia a moça, aos prantos. – Por favor, fique comigo. Não me deixe aqui... não agora, não desse jeito. Por favor, fique comigo, Matthew.
Deus tirou a mão da cabeça de Matthew, que voltou ao Paraíso assustado. Olhou para o rosto de Deus, exigindo explicações. E as explicações vieram.
– O número que eu te dei era o número da sua casa. Sherrie não pôde atender porque ela está com você no hospital. Você tem pouco tempo pra decidir, mas ainda pode voltar pra lá se você quiser. Eu só te mostrei aquela visão para ajudar na sua escolha.
Matthew fitou os céus por alguns minutos, pensativo. Começou a lembrar das palavras que o Criador dissera: “Tudo o que você sente falta ou um dia irá sentir, te acompanham até o Paraíso.” Em um momento, lembrara também das palavras de Sherrie no quarto do hospital: “Por favor, fique comigo, Matthew.”
Então, surgiu a resposta.
– Eu já me decidi.
Deus olhou meio aflito.
– E então, filho?
– Eu tenho muita coisa inacabada na Terra, há muitos sonhos que eu ainda quero perseguir. – explicou Matthew. – Sem contar que, Sherrie é o amor da minha vida, eu não iria aguentar viver sem ela.
– Então essa é sua decisão? – questionou o Criador. – Você quer voltar à vida? Quer uma segunda chance?
Matthew então respondeu, sem pensar por um segundo.
– Não. Eu quero ficar. Eu sei que eu devia ter muitas coisas para fazer em minha vida, mas eu tenho que respeitar a ordem das coisas, sabe? E, bem, as melhores coisas que eu guardo da minha vida são as lembranças, os amores. Se isso tudo vai me acompanhar até aqui, eu não vejo o porquê de voltar. Eu vivi o que me foi permitido, fiz minhas escolhas e não me arrependi. Vou carregar as boas memórias na minha mente, e vou levar Sherrie para sempre comigo. Enquanto eu carregá-la em meu peito, não há saudade forte o bastante para me derrubar. Não há lembrança ruim que vá me torturar. Não há nada que vá me fazer arrepender da vida que eu tive.
O Criador sorriu, pareceu estar realmente orgulhoso de sua criação. Amparou Matthew, que estava aos prantos, e enfim lhe abraçou. Deus sabia que Matthew não ia mais desistir da sua escolha – e também, não havia mais tempo.
Os dois então caminharam rumo ao horizonte, enquanto as lembranças de Matthew iam preenchendo a paisagem do Paraíso. Em um reflexo, olhou para trás e jurou ter visto Sherrie acenando, e então acenou de volta. Despedidas são sempre difíceis, mas Matthew sabia que aquilo era preciso, assim como sabia que aquela seria a última despedida da sua vida. Seguiu em frente com o Criador, e não olhou mais para trás.

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